quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Paralelas

Alguns paralelos traçados entre as manifestações do catolicismo popular e do pentecostalismo (e por que não protestantismo?) contemporâneo.

Resido em Ananindeua, município da região metropolitana de Belém (Pará). Norte do Brasil, fundada em 1616, Belém é uma cidade marcada pelo catolicismo – como quase todas as cidades históricas do Brasil. Uma das manifestações locais da fé católica é o Círio de Nazaré – procissão que remonta ao ano de 1793 e que atualmente envolve cerca de dois milhões de pessoas (romeiros). A procissão percorre alguns quilômetros do centro de Belém, anualmente, no segundo domingo de outubro. É um evento já incorporado à cultura do estado e do povo, onde se misturam fé, economia, mídia, política, audiovisual etc. O evento foi registrado pelo IPHAN, em 2004, como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial.


Mas existem alguns pontos interessantes, nos quais posso traçar um paralelo às práticas da religiosidade evangélica. Duas religiões (ainda que sob o mesmo rótulo de cristãs) antagônicas, que se negam mutuamente, mas que não diferem tanto assim em certos pontos.

1. Um primeiro ponto, por ser o mais óbvio, é a espetacularização do sentimento religioso. O Círio de Nazaré é um evento televisionado pelos principais canais do Pará, e até em outros estados. A repercussão é nacional, e a grandeza do espetáculo faz com que o mesmo ultrapasse as fronteiras da religião, misturando-se a economia, política, cultura etc., como já afirmei acima. Se compararmos aos megaeventos gospel, aos cultos televisionados, às marchas e arrastões para Jesus, veremos que estes não se diferenciam muito da procissão católica, no que tange a transformação do acontecimento religioso em espetáculo sociocultural. A religiosidade vaza do seu para outros círculos sociais, principalmente através dos meios tecnológicos da informação proporcionados atualmente (televisão, internet, propaganda, dentre outros).


2. Outro ponto que levanto, já tecendo um juízo de valor, é a noção de sacrifício implícita a ambas as religiões. Na procissão católica existem promessas, que devem ser cumpridas durante a procissão em troca de pedidos realizados pela Virgem de Nazaré. É comum romeiros percorrerem o trajeto de joelhos, levando réplicas de casa, barcos, partes do corpo, conforme a benção recebida. Nas igrejas evangélicas os votos são cumpridos de maneira semelhante: sacrifícios financeiros, de tempo, físicos, emocionais... A grande diferença é até irônica: enquanto os católicos sacrificam por ter recebido, os evangélicos sacrificam para receber; só muda a forma de pagamento, mas a religiosidade consumista prevalece. Há também uma questão evidente: é importante sacrificar algo em agradecimento a Deus, e este sacrifício é sempre validado pelo coletivo. Os fiéis são condicionados a manifestar seu sacrifício publicamente. Apesar de Deus estar em todos os lugares, ainda é necessário pagar suas promessas ou cumprir suas alianças na frente das câmeras, das multidões, dos olhares, do coletivo. Por isso não faz tanto sentido percorrer o trajeto do círio – em cumprimento de uma promessa – no mês de setembro; ou fazer de forma anônima uma oferta de sacrifício (dedicando tempo ou dinheiro) para uma instituição de caridade, e não em um culto sob a vigilância eclesiástica.


3. O terceiro ponto está intimamente vinculado ao anterior: o estabelecimento do sagrado nestas manifestações. O caráter do sagrado, separado, santo, pressupõe a mediação entre o ser humano comum e Deus, criando níveis de importância, e consequentemente hierarquias eclesiásticas. No Círio de Nazaré existe a imagem da santa, ao redor da qual se constrói a procissão. A corda que é utilizada para puxar a berlinda com a imagem, inclusive, é fracionada pelos romeiros à golpes de faca: cada um quer levar um pedacinho da corda sagrada como amuleto espiritual. Há também as pessoas que ocupam cargos eclesiásticos: bispos, arcebispos, padres etc., mas sem dúvida estas não são tão revestidas do caráter de sagrado do que as do meio evangélico (pastores, obreiros, reverendos e outros). Apesar da iconoclastia, no meio evangélico também existem objetos sagrados – mas sem a força que é vista no catolicismo – como os amuletos (pulseiras, prospectos, miniaturas e tudo o mais que a criatividade permitir) distribuídos nos cultos e campanhas. Essa noção do sagrado, e de mediação, é um dos motores necessários para a institucionalização da religião. É preciso acreditar em objetos, entidades ou pessoas melhores do que nós (porque mais próximos de Deus), para que a religião formal se estabeleça – com toda a dogmática que lhe é peculiar – e para que as experiências coletivas (dentre as quais o sacrifício em público) façam sentido.


4. Por fim, gostaria de questionar o caráter eventual destas manifestações religiosas. É importante perceber como estas experiências se dão de forma pontual: são acontecimentos, eventos, delimitações espaço-temporais reservadas para a comunhão com Deus. Em ambas as religiões é notório como a concepção de comunhão pessoal e cotidiana é substituída pela comunhão esporádica, programada e coletiva. A atitude de fé não mais requer uma transformação de vida constante e evolutiva (como Cristo tentou ensinar), mas sim uma participação espetacularizada e momentânea. Quanto mais gente reunida, melhor, maior ainda será a demonstração do poder de Deus. E eis um paradoxo: ao substituir a comunhão pessoal e constante por uma coletiva e momentânea, as religiões acabam invertendo as prioridades da fé: servir ao próximo deixa de ser importante, e dá lugar a um individualismo exacerbado. As grandes multidões propiciam isso: todos ali amam o ilustre desconhecido ao seu lado (reunidos debaixo da mesma bandeira), mas estão mesmo é preocupados com seus próprios problemas e interesses. Celebração do eu, grave desvio do mutualismo cristão. Não há mais um eixo que una os cristãos sob o mesmo objetivo, mas sim uma fragmentação de interesses diversos reunidos em uma mesma coletividade diluída.

Estes questionamentos que fiz, de certa forma até mesmo parciais e subjetivos (admito), tem a intenção de apontar como as características da nossa contemporaneidade (individualismo, espetacularização, diluição dos limites) refletem nas manifestações religiosas, traçando paralelos até mesmo entre expressões opostas, como o catolicismo popular e o pentecostalismo contemporâneo.

De certa forma é preciso ter coragem e força para romper com os moldes que nos são impostos pela religiosidade, e conseguir situar-se nos interstícios, nas brechas do sistema. Portanto, se você que me lê se propõe a ser igreja alternativa, mas identifica-se com a maior parte das questões aqui apontadas, sinta-se decepcionado: sua expressão de fé pode ser mais tradicional e institucionalizada do que você imagina.

2 comentários:

Amauri Silva disse...

Gil,

Parabén pelo texto.

E, quanto ao texto ter sua tendência, ser opinativo, fazer juízo de valor, não se preocupe: não existem textos que não exprimam uma opinião de um indivíduo ou grupo, ou que não contenha, expl[icita ou implícitamente, filosofias e preconceitos. Engana-se quem pensa que alguém consiga escrever sem ser tendencioso.

Seu artigo é um ótimo artigo de opinião, contundente na medida certa, questionador sem ser chato ou mal-educado.

Pra mim o protestatismo desde o começo é uma tentativa de fazer a sua "festinha particular" dentro do cristianismo: os católicos deitavam e rolavam com o dinheiro do povo, e os Reformadores pensaram "como é que esses porcos deitam e rolam em cima do nosso povo? Nós é que temos que deitar e rolar em cima da NOSSA ralé. E deu no que deu.

Ainda não conheci nenhuma facção (porque isso que são) cristã institucionalizada que seja diferente: são todos farinha do mesmo saco...

Gil Costa disse...

Valeu Amauri.

O que percebo é que, quando a fé se torna instituição, esta se sobressai aos homens. Por mais que os seres humanos que constituem a instituição tenham as melhores intenções, a ideologia da instituição sobressai aos mesmos.
Principalmente nessa sociedade capitalista em que vivemos.
As instituições religiosas tornam-se só mais uma ferramenta para adquirir capital econômico, capital simbólico, poder político etc.
E estas mesmas instituições farão o impossível pra se manter de pé, por mais que alguém tente resistir. É um sistema viciado.

E o Círio está chegando aqui em Belém. É triste ver que a fé de tantas pessoas se ampara em alicerces tão frágeis. Que Deus nos abençoe.

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