quinta-feira, 29 de abril de 2010

Painel de José Régio

Sei que o luar era medonho, era amarelo, e que tudo isto me parece um pesadelo, e creio, talvez, que meu vago pensar me transporte para o momento mesmo em que, com tanta angústia, atravessei o portal que me separava da crua, fria e intensa realidade, daquele caminho cheio de pedras que nos leva da vagina maternal ao buraco na terra que maternalmente nos engole.

O que importa é o riso doido e cínico, sem regra, que subia em mim como uma onda negra, e, estrelados de lágrimas, meus olhos inocentes ajoelhavam ante os dois vultos desmedidos que me esmagavam, crescendo sempre, entre meus risos e gemidos, entre os quais me sentia pequeno e miserando.

Os dois homens se portavam um a cada lado meu, sem que me atrevesse a olhá-los, apenas adivinhava-os e pressentia-os, um dos quais de vestes brancas e limpas, a face reluzente de anjo de luz, o olhar plácido e cativante, as meigas palavras, as doces lágrimas, as promessas, as mãos eclesiásticas e macias que provavelmente beijei, como que para pedir a benção, todo trêmulo e confuso, cheio de amor e de terror por esse intruso.

O outro, figura peregrina, com olhar profundo, mãos grossas e sujas, aroma doce de bálsamo disfarçando o odor fétido do corpo suado e do sangue derramado, porventura culpado de derramar muito sangue, sua face despida de qualquer beleza ou encanto, suas promessas desprovidas de qualquer sedução, diante do qual me postei de pé, como que insultado pela afronta da presença de tal moribundo, que despertava em minha memória vozes funestas que advertiam: carrega tua cruz!

E como eu não o fizesse, o desgraçado em afronta ainda maior tomou todo o jugo do meu fardo sobre seus próprios ombros. E pus-me a segui-lo.

Ou melhor, dispus-me a segui-lo, entretanto sem nunca tê-lo feito.

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Este texto faz alusão ao poema Painel, do português José Régio.

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