Tenho me perguntado se, afinal, existem verdades “morais” inerentes a todos os seres humanos, assim como existem verdades científicas. Temos que respirar, comer e dormir, independente de sermos budistas, ateus, mexicanos, holandeses, homens ou mulheres. Não existe “certo ou errado” em respirar, assim como não existe “certo ou errado” em dizer que mamíferos mamam. Simplesmente são verdades científicas, que posteriormente podem ser derrubadas por outras verdades ainda mais cientificamente verdadeiras que estas.
Mas minha dúvida não tem a ver com ciência, e sim com a existência pressuposta de um tipo de verdade que não é científica, mas, digamos, espiritual. Por espiritual quero dizer relativo à moral, aos deveres do ser humano para com seus semelhantes e para consigo. Traçando um paralelo com a ciência, ouso afirmar que não estamos lidando com o bem ou o mal, mas com a própria natureza humana, ou aquilo a que esta natureza se inclina a ser. Não sei bem se a natureza humana se inclina para algum tipo de verdade espiritual, já que parecemos ser todos imorais e injustos, mas talvez seja esta natureza mesma a nossa. Nossa verdade espiritual pode ser totalmente imoral (segundo nossos padrões morais estabelecidos, mas nunca cumpridos). São quase dez da noite e este último parágrafo me deixou completamente confuso, mas vou tentar prosseguir.
O que me pergunto, afinal, é se Jesus Cristo, que creio ser a manifestação máxima de Deus aos homens, portava e ensinava essas verdades espirituais, que também se manifestaram em outros grandes vultos históricos. É claro, é de um vigor impensável despir a figura de Cristo, e de tantos outros, de todas as camadas mitológicas que vão se sobrepondo com o decorrer dos anos e dos discursos. E é justamente por isso que me indago a respeito de verdades espirituais. Para conhecer verdadeiramente a Cristo, portanto, não seria preciso escavar na história, na teologia ou na filosofia, bastaria encarnar as verdades espirituais que Ele professava.
Se as coisas realmente são desta maneira, a religião torna-se relativizada, assim como a pessoa-imagem de Cristo, não sendo acessível somente através de um conhecimento da verdade, uma gnose, mas tão somente através de uma manifestação de características indissociáveis do próprio ser humano (as tais verdades espirituais). Agora isso já não me cheira tão bem... Se são verdades espirituais, típicas do ser humano, por que tantos se desviariam daquilo que lhes é mais intrínseco? Corro o risco de acabar mergulhado na velha dualidade grega “corpo versus alma”, “matéria versus espírito”. Definitivamente não pretendo colocar a culpa nas nossas pulsões carnais. A rigor, até onde sei, o ser humano é matéria. É provável que ele possua algo além, algo que denominamos alma ou espírito, mas não sei se esse espírito pode ser separado da matéria. E a Bíblia não parece indicar que espírito e corpo possam andar separados.
Porém, voltando à minha dúvida, verdades espirituais corresponderiam aquilo que muitos chamam de humanidade, no sentido de complacência, compaixão. Este termo, claro, exclui outros animais da possibilidade de sentir e agir de maneira solidária com outros, da sua espécie ou não. Mas não vem ao caso. O que eu quero saber é por que diabos as pessoas, algumas vezes, cometem “burrices” (em uma perspectiva evolucionista e de sobrevivência da espécie), pois frequentemente elas abrem mão de seu próprio bem-estar e decidem correr riscos em nome da compaixão que sentem pelo outro, naquilo que denominamos “ajudar”. É essa espécie de instinto cooperativo que penso fazer parte desse repertório de verdades espirituais. Quando sentimos a dor pelo outro e tomamos o seu sofrimento para nós, me parece que estamos “praticando” estas verdades. A bondade, portanto, seria uma destas verdades.
Reconheço, entretanto, que todos os adjetivos que possamos criar (bondade, amor, compaixão, solidariedade) parecem mais tipos ideais, inalcançáveis, permanecendo o ser humano na oscilação da incapacidade de ser ideal ou perfeito.
Claro, se afirmarmos a existência de verdades espirituais inerentes ao ser humano estaremos abalando as nossas próprias concepções religiosas. Concepções estas que se baseiam na posse de um algo especial: fazer parte do povo eleito, estar na religião certa, seguir a sã doutrina. Não, verdades espirituais do tipo que desconfio existir não se prestariam a tais exclusões. Elas seriam universais, e independeriam de cultura, manifestando-se mesmo em todas as pessoas, nas mais diversas situações, podendo ser reprimidas, castradas ou manifestas e multiplicadas.
O termo “verdade” é até inadequado. Considero mais como “tendências espirituais”, uma espécie de propensão a manifestar a “humanidade” que Deus pôs em cada um de nós.
O óbvio é que o amor seria a principal tendência espiritual.
O paradoxo é que nós sempre iremos reprimi-lo (ou melhor, não cumprimos a lei do amor, mas nunca chegamos a substituí-la). Nossa natureza, ao que parece, é antiamorosa, antissolidária, individualista. Mas em poucos momentos deixamos vir à tona esta tendência ao amor. Deve ser por isso que Cristo propôs uma disciplina séria para que seus discípulos o seguissem: abandonar a si mesmo, não querendo salvar-se. Ele provavelmente sabia do que estava falando. Eu, no entanto, não posso dizer o mesmo a meu respeito...
Com João ouso dizer que Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus (I João 4:16). Seria o amor uma tendência espiritual, que foi manifesta em Gandhi, em Betinho, em Madre Teresa, em Maomé? Um ser humano, ao praticar o amor, aproxima-se de Deus e permanece nele, a ponto de estar conhecendo-o?
Nesse caso, não faz sentido preocupar-se com salvação, conversão (à religião), sectarização, pois a fé, quando trazida para o campo do social, já demonstrou ser capaz de articular hecatombes e desastres de todo tipo. E até mesmo porque Jesus Cristo já falou que o Reino está em nós. Cumpre que deixemos este Reino se manifestar o quanto antes.
Bem, não sei mesmo se as tais tendências espirituais existem, mas não consigo crer em um Deus que se deixe pertencer a apenas alguns, por conta da posse do laço sanguíneo (Israel), do livro (Bíblia) ou do credo (cristianismo). Deus, em minha opinião, tem que estar em todos, em tudo, manifesto na plenitude de seu ser porque, afinal, Ele é Deus. Pode parecer um esforço exagerado da minha parte em tentar moldar Deus conforme minhas concepções, mas posso assegurá-los de que todas as outras concepções têm o mesmo valor que a minha, ou seja, absolutamente valor algum. Deus é incompreensível ao homem, e tudo que falamos, fazemos e pensamos a seu respeito são apenas especulações. O homem moldando Deus a sua imagem e semelhança.
Você entendeu o que eu quis dizer? Nem eu.